segunda-feira, 14 de julho de 2008

Bate-volta forçado na África


“Deus é um cara gozador, adora brincadeira.
Pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, nasci brasileiro”
Chico Buarque

Eu tinha que sair da União Européia, voltar e carimbar o passaporte. A partir dessa nova entrada eu poderia ficar mais 3 meses por aqui. Isso eu sabia desde o dia 7/4, quando peguei o mesmo avião com destino ao Marrocos em que estava a Daiane “Pigméia” dos Santos. A questão era em qual pais eu ia fazer o maledeto stop&go. Pensei Israel, pensei Turquia, pensei Marrocos e pensei Suíça. Essa última opção caiu por terra quando desembarquei lá e nem olharam meu passaporte, por tradição eles não carimbam.

À medida em fui descendo e vim para na Sicília, ficou claro que teria que ser ou para a Tunísia, pontinha da África que quase encosta na Itália, ou na Albânia, pegando um ferry de Bari, na região da Puglia. No pub Taarna, que também era pizzaria, o responsável pelas redondas era Ali, tunisiano, que me arrumou carona com um amigo (ou um fratello, como eles gostam de dizer), o Saliem, que leva e traz muamba toda semana.

Com o trabalho no Casanova Café agitado e com o alojamento em Taormina combinado, eu tinha 4 dias livres para fazer o jump africano. Minha data limite como turista era 20/07, porque entrei oficialmente na França em 20/04, então chegar lá no dia 8 nem ia dar bandeira se me perguntassem qualquer coisa, diria que quis ver mais um pais para a minha lista. Como foi tudo muito rápido, fui anotando no caderninho momentos específicos e pensamentos, que reproduzo abaixo.

08/07/2008
10h35 – Porto de Palermo
Acordei às 03h45, o Saliem passou de carro para me pegar num ponto de encontro às 4h40 em Catania para virmos a Palermo, de onde sai a balsa e o horário marcado no bilhete (ida-volta 97e) é 10h30 e não tem ninguém a bordo ainda. Ou seja, na prática não estamos mais na Europa. Ainda mais pelo fato de eu ter escutado árabe 70% do dia até agora, inclusive um belíssimo CD do Alcorão cantado.

10h50
No embarque o oficial de imigração pega o passaporte e diz: saudade.

10h55
Pessoal amontoado, carregando os pertences. Que merda essa vida de imigrante na Europa. E o pior é que essa é a melhor vida que essa pessoas podem ter.


11h50
O barco tá navegando e eu nem percebi. O deck, que eu imaginava aberto e sujo, se parece com um hall de churrascaria. C-H-U-R-R-A-S-C-A-R-I-A, tá aí uma palavra que eu não escrevia nem pensava há tempos.

É uma viagem pensar que só estou fazendo essa viagem porque ninguém nunca correu atrás de fazer passaporte italiano. Meu trisavô era senador desse pais, meu deus!
Tomara que a informação do site vistos.com.br esteja correta e eu não precise de visto para entrar na Tunísia, senão, amicci, eu danço legal.

15h05
Todos que estão à minha volta são muçulmanos. Dois deles já estenderam o tapete e rezaram. Para lados diferentes, sendo um virado para a parede à minha frente e outro para a parede atrás de mim. E, segundo o católico aqui, com um mapa debaixo do olho, o certo seria se curvar para a parede da esquerda, bem na direção do banheiro.

15h09
Um moleque de uns 11 anos, com um sorriso gostoso e uma camiseta verde-gialla-blu com estampa do Rio de Janeiro passa de tempos em tempos para bizoiar o pai, a mãe e as irmãs. A estampa me deu vontade de Ipanema, de água de coco e açaí do BB Lanches. Vai tá tudo lá quando eu voltar.

16h01
A menina ao lado está com o olho irritadíssimo, ofereço colírio. Moura Brasil, ela aceita. Uma gota e fecha os olhos por um minuto, recomendei.
Eu queria muito ver o mar e tomar sol. Pedi para a mãe da menina olhar minha mochila, ela sorriu. Saí pro deck.


16h15
Como o mar é tudo nessa vida. O sol belisca a pele, mas o vento beija. A saída dá de cara prum heliponto. A menina desperta na espreguiçadeira, olha o azul em volta e sorri sozinha.

16h28
Flagro o filho de 15 anos da família vizinha a minha poltrona no corredor que leva ao deck dando uma cabeçada de propósito na parede: sei pazzo?

17h21
Começo a ler o livro Cosa Nostra, de John Dickie, sobre a máfia siciliana, mas em inglês, meu italiano lido ainda deixa muito a desejar.

17h45
O senhor pai da família vizinha é muito simpático, conta que planta tomate, berinjela e abobrinha orgânica na região de Ragusa. Uma vez ao ano vai de férias para a casa, na cidade de Sousse. Nãosei seu nome, mas sei que está subindo um senhor futum da sandália dele .

17h55
Ficar ao lado da porta do banheiro é uma merda (mas era o único lugar que tinha, porque fiquei esperando Saliem resolver uma burocracias). Ou pior, um mijo.

18h40
O menino de 15 anos, o da cabeçada, dorme de bruços, de mão dada com a mãe. O caçula, de 11, usa o braço esquerdo do irmão como travesseiro.

20h00
Soneca. Opa, soneca não, desmaio! Levei um sono sublime para uma poltrona de churrascaria.

20h10
Deck molhado. Choveu e eu nem vi!? Sinto falta de chuva. Que tal um EasyJet pra Londres!?

20h11
Que vento! E que pôr do sol lindo. Tem até um friozinho.

20h39
Estamos chegando e o Saliem sumiu. Nem sei se vou atrás dele, algo me diz que vou ficar melhor sozinho.

20h50
Fui pegar a mochila, encostada no canto, a uns 2 metros da porta do banheiro e as tiras estavam fedendo a mijo! Porra, che schifo!

21h30
Imigração, fuçada, Brasil, Ronaldinho, sussa. Valeu dentuço.

21h40
Troca cash, 80e – 144,960 dinars.
Banheiro, mijado.

21h46
Une Fanta s’il vous plaît. 1,300 dinars. Será que com 80e pra dois dias eu vou ser rico aqui? Vamo ver o que dá pra fazer com esse cash.

21h53
Meio dèja vu do Marrocos, mas aqui não tem ninguém com roupa típica, mulher de lenço e tô vendo até um joelhinho à mostra. Dolce & Gabbana, Benetton, falsifiées, bien sûr.

21h59
A Fanta daqui é laranja e doce, mais que a do Brasa. A da Italaia é amarela e mais gasosa que tia gorda depois de feijoada.

00h02
Rolê no chiqueirinho de um furgão de um amigo do Saliem que queria 10 euros, mas levou 10dn no final, +/- 5.5e. Cheguei moído.

Hotel OK, mas foi além da previsão de 19e, 27,50e na real e sem tv. Meu dimdim já foi e eu não sou rico nesse lugar.

Banho muito bom, quarto em ordem, AC, shampoozinho e sacada boa pra secar roupa. Ultimo sanduba de mortadela, importado da Itália.

09/07/2008


12h13
Mundo árabe de novo. Já vi isso total. Enche o saco negociar e barganhar até um copo d’’água e ser empurrado pra dentro de todas as lojas para ver tudo “pelo prazer dos olhos”. Talvez meus olhos estejam cansados, assim como meu corpo. Levantei às 9h40 forçado para não perder o café.

Saí, achei a medina, andei pelos souks, me perdi, me achei e agora tô na praça singela e bonita dos ministérios (premier e finances). Lá na frente tem um palácio grande e envidraçado com o azul dos prédios da Berrini, deve ser do rei ou presidente. Estou desinformado, sim.
Agora sim o mundo árabe que eu conheço/imagino: mulheres de véu suando em bicas e homens de croc, cabelo curto (sempre bem cortado) e bermuda.

12h39
Comprei postais, lembrei de você.

12h41
Senhora, de véu meio ocre e belo sorriso: bonjour, ça va? Com energia boa e sorriso sincero qualquer humor melhora.

12h50
Três meninos de uns 8 anos passam cantando, com muitas vogais. Despreocupação.

12h59
Pomba voa até o galho mais alto com palha no bico. Cada um tem seu ninho.

13h04
Manada de turistas armados com câmeras digitais, como a minha. Não olham, não param, só clicam.


13h07
Os 4 meninos voltam, erguem as bermudas e entram na fonte, menor que piscina de motel. Versão tunisiana do tibum no espelho d’água na Esplanada dos Ministérios.

13h09
Duas meninas chegam perto da borda, a maior 7, a menor, 3 anos. A caçula empurra a primogênita, que quaaaaase vai. Rio alto, os pais me olham. E riem junto.

13h13
O mais velho dos meninos tira o bigulim e mija num arbusto de florezinhas vermelhas no meio da praça. O soldado armado com fuzil olha. E só. Despreocupação ao quadrado.


13h38
Rolezinho na frente do palácio. Fotos. Sol de rachar, querido diário.

13h50
Retorno à medina, acho kebab, como kebab e converso com o kebabeiro sobre... adivinha, uma chance só. Dica, tem uma bola e 11 jogadores de cada lado...

14h10
Querem me vender tudo. Prazer, meu nome é Cifrão.

14h20
Compro salgadinhos locais, folhados, parecem bãos.

14h25
Por 1,5 dinar compro um CD de músicas do time local o Esperance Sportive Tunisienne. Se tem esperança no nome deve ser o Curintia local.

14h41
Banho merecido e necessário.

15h01
Cosa Nostra. Instigante, educativo, merecido, necessário.

15h30
ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ

18h30
Morri e voltei. Os salgadinhos são bons, ainda tá um calorão lá fora. Mais livro e saída mais tarde.

21h30
Role pra comer. Nada de opção, a não ser kebabs, parece Paris. Não quero mais isso, quero coisas estranhas, tipo no Marrocos. Tomei cidra Boga, doce, amigo...

21h44
Hotel de la Paix, cotei, 20Dn, menos da metade do meu, pena, já foram 2 diárias.

21h54
Entrei no supermercado Monoprix e fiquei namorando uma bike de 99Dn, uns 55€ (descobri como faz euro no teclado!). Tinha um senhor namorando também, mas ele levou a dele e disse: “É muito bom isso aqui, é saudável e a gasolina tá muito cara”. Acho que eu seria feliz com uma bike em Taormina para descer a montanha.

22h00
Deixei o celu no quarto e mamãe ligou. Não consigo ligar porque não tenho mais credito, nem pra receber. Fiquei preocupado.

22h20
Amanhã correio e internet.

00h06
Overdose de Máfia, tô na pagina 42 já. Em inglês é mais slow, my amicci. Tentar dormir, amanhã não tem caminha gostosa no ferry.

Fico lembrando do Brasil, de pessoas importantes. Sergio Mallandro, por exemplo.

10/07/2008
07h15
Camareira bate na porta. Eu tinha deixado o papel de donotdisturb na maçaneta. Ontem elas entraram, me viram dormindo e saíram. À tarde, bateram na porta e eu berrei ‘um minuto’ duas vezes e elas foram entrando, me pegaram de cueca, lógico. Hoje de manhã não perdoei e berrei: NOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!

07h25
No more sleep.

07h50
Deitado de outro jeito, quem sabe...

08h15
Nada. Putz, o que é que eu sonhei mesmo? Um sonho meu lembro, tinha o Papai Noel da Lew Lara regulando uma senha de computador. Mas o outro...

09h50
Acho que consegui dormir. Correr pra pegar o breakfast.

10h10
Café bom, croissant au chocolat. Na Itália chamam de cornetto, assim como sanduíche, que são os únicos além dos americanos a terem uma palavra própria: panino.

10h50
Correio, selos, um super bacana, triangular. Comprei um a mais e colei aqui.

11h21
Música boa no camelô pergunto o que é, quanto custa e vamo que vamo. É meio funk, e o cara tem cara de motorista de carro funerário.

reLiGião

11h50
Entro na igreja para ver como é a daqui, já que em mesquita quem não é muçulmano não pode entrar.

11h55
Uma menina alegre de 17 anos senta do meu lado e puxa papo. Disse que ama a igreja, mas os pais são de Alá. Começou a falar demais, a freirinha veio dar uma chamada. A mina quer porque quer falar lá fora. Vamo ver qual é.

12h00
Mina doida, já tava de papo com outros dois cara, sob os olhos da freirinha ressabiada. Vazari!

12h40
Pôsteres de Bruce lee, Bob Marley. Busto de Che.
Começa caça pelo badge da Tunísia: Rue de Bachá.


13h50
Comprei uma camisa da seleção local, com o nome do craque Jaziri nas costas. O cara queria 35, levei por 15. Tô desenferrujando na arte da barganha.

14h40
Que volta! Achei o badge finalmente, a rua era longe, fora da muvuca. Coca-Cola em todas as línguas.



14h50
Liga pra mãe, tá tudo bem, graças a Deus. Vovó vai operar a bexiga amanhã. Mando vibrações desde já. Ela quer que eu compre colares para dar de presente, cansei de barganha já.

15h20
Já comprei 4 colares e um par de brinco, chega.

15h35
Supermercado. Recomeça o namoro com a bike. Mesmo sem comprar batizei-a Sharon, porque só ela via ver o que só a Stone viu e deixou o mundo com vontade. Noia de transporte, fronteira e cash.
Amarelei, deixei no corredor.

15h50
Achei um taxista disposto, Abidi, que vai fazer o traslado por 15dn às 17 até o porto. Me pega no hotel. Palavra aqui é vale legal.

15h55
Volto ao super. Levo Sharon pra casa. Saio e me sinto o Vital, da música dos Paralamas do Sucesso. O guidão tá mole e me frustra um pouco, pode ser bom pra levar no carro. Depois arrumo uma chama philips e arrumo. Pena que a bateria da camera acabou. No pictures de Sharon.

16h05
Pago o hotel, o mesmo preço da Sharon. Passaporte back.

16h25
Escrevo essas linhas de dentro da banheira. Resolvi me dar o luxo. Nunca fiz isso, medo de molhar e acabar com todos os relatos... só falta uísque.

18h00
Tudo OK no traslado até o porto, já fiz check-in e tô aqui com Sharon esperando anunciarem no microfone o embarque Tunis – Palermo, da Grimaldi Ferries. Da rua até agora 2 caras já quiseram comprar Sharon, mas eu nem dei trela, se começar a falar de dinheiro os caras não param mais. Não fazer o negócio ofende a honra de um árabe.

18h05
Só esperar.

19h05
Tô com sono, mas tem nego de olho na Sharon.

19h40
Sorriso da moca da imigração. Gordinho que abriu minha mala anteontem olha o passaporte e diz: - Só 3 dias, Brasil?
(...aham, na verdade não foram nem 3)

19h50
Novo parceiro de viagem, o caminhoneiro Franco, uns 30 anos, de Catania, uns dentes faltando, muito educado e gente fina.

20h45
Mais passaporte. Acho uma caminha pra Sharon, com cordas e tudo.

20h56
Consegui pegar um sofá.

21h07
Buono apetito. Sanduba de atum mais picante da vida.

21h20
Bode. Bééeeeeeee.

21h30
Que bacana, Franco é casado com uma tunisiana e se converteu à religião muçulmana. Estudou o Alcorão e tentou me explicar porque Alá não deixa comer um torresminho. Tô meio lesado, no ho capitto.

21h33
No bilhete tava marcada 21h00.

23h35
Nada, ainda parados em Tunis. É bonito ver o pizzaiolo Ali, que agitou essa viagem pra mim, cuidando da prole. Ele foi pra casa uma semana antes porque seu pai não estava bem do rim. O tiozao do meu lado começa uma sinfonia de peidos e roncos.

11/07/2008
Porto de Palermo

09h50
Ueba. Vejo continente.

10h17
Ali me pagou um café para eu desembarcar com 3 pares de Nike Air. Ele já está trazendo outros 3.

10h26
O café não caiu bem. Agora eu sou um extra-comunitário, muambeiro e com risco de caganeira no porto de Palermo. Great!

11h21
Espero Ali com a muamba na mão ao lado do cara que abre as malas. Já me contou toda a sua agitada vida de fiscal no porto e eu a minha de viajador 171. Amicci, tapinha no ombro e tudo.

12h45
Uma jornada do porto até o centro, para pegar o busao pra Catania. Achei uma loja de ferramentas com uma vendedora gostosa. Me emprestou varias chaves e até graxa. Comprei uma só, por 3€. Mão na roda.
Tô suado pra caralho.
Senhorinha gente fina segura a bike pra mim enquanto entro na loja de bilhetes. Lembrei da trip do Fer e do Gordão de bike da Bahia até Sampa.

12h50
Chegou o busao. Sharon vai desvirginar no quesito porta-malas de bumba.

16h00
Chego na casa da Alice, em Catania. Vim pegar minhas coisas. Tá muito quente, tô ensopado. Hoje me mudo pra Taormina. Tá tudo certo lá. Só preciso colocar tudo dentro da mochila. Não coube. Mesmo usando os 90L. Saio pedalando por Catania até a estação, muito peso nas costas. Sharon vai bravamente.

Sunset in Tunisa

Tô de casa nova. Logo mais mostro aqui. E conto como é morar num hotel de 1920 caindo ao pedaços. Obrigado por ter lido até aqui.

3 comentários:

Square Beast disse...

Ufa, consegui..rsss...pra variar da hora essa aventura tunisiana..abs

Anônimo disse...

Sensacional relato da viagem à Tunísia!Muito boa a parte do tiozão da sinfonia huaeuheauhae

Unknown disse...

Perdão o anonimo acima é meu comentário...Apertei o botão errado...