segunda-feira, 28 de abril de 2008

Paris, eternamente agradecido

Dois dias em Paris é pouco. Precisávamos deixar malas, descarregar as quinquilharias mil que vieram do Marrocos. Claro que não sou eu o sacoleiro e todas as minhas aquisições juntas não enchem um saquinho de supermercado. Mas como tamo viajando juntos, fiz esse esforço incrível e dramático de passar duas noites em Paris. Um sofrimento só, menina!

Paris é de muita gente, muito misturada. Aquela cara do francês padronizada, que eu conheço depois de muitas horas dividindo carteiras e salas de aula, já quase não tem mais. Todo mundo tem uma cara meio globalizada, por mais gaulês que aparente ser. Tem sempre um elementos na roupa, no jeito ou no andar que dá uma cara de “mélange” intenso aos parisiens.


Mistura que trai os pré-conceitos

Metrô aqui é uma terapia étnica. Uma vitrine de peles, cabelos e tamanhos diferentes. Mais que isso, é uma amostra de heterogenidade do ser humano. Um nórdico dividindo banco com um cidadão creóle é mistura. “Só misturando pra ver no que vai dar”, diz a música Homem Amarelo, d’ O Rappa. E na Cidade Iluminada o título da canção se enche de sentido e coerência. Há preconceito em Paris, claro que sim, mas há também um certo mea-culpa por ser a gigante que é. Por mais que se falem de políticas para controlar imigração, há um quê de coração de mãe latente no ar. Muito espaço para os turistas, você não vai se sentir um estranho se abrir um mapa no meio da rua.


Junto com essa indiferença positiva, vem também um aspecto óbvio, mas curioso do cidadão: a solidão. Cada um que anda a caminho de casa ou rumo ao trabalho, com seu fone branco plugado no ouvido (ninguém não tem iPod) carrega no rosto uma implícita tatuagem de solidão. A metrópole cosmopolita acelerada e frenética não aparenta ter tempo nem muita paciência para relacionamentos humanos. Não estranhe a frieza de um parisiense. Perto deles, nós paulistanos somos verdadeiras donas de pousada baianas. Quando Zeca Baleiro escreveu “Eu tava triste/ Mais solitário que um paulistano” ele com certeza ainda não tinha analisado o povo daqui.

E como é caro. Não vou ficar aqui fazendo comparações ou o data-big-mac, muito usado pelos guias de viagem. Tudo custa os olhos e uma etiqueta salgada das Galleries Lafayette pode ajudar a explicar a solidão, o frenesi e a beleza de Paris. A impressão é que esse rush todo é para alimentar esse círculo viciante, ganhar dimdim para poder bancar o life-style e continuar vivendo aqui.


Mas não tem essa pegada fashion pagação. A coisa é fluida, tem muito intelecto funcionando aqui, uma coisa bem menos maquinária que Nova York. Tem uma preocupação política (senti muita satisfação com Sarkozy. O cara faz as coisas, principalmente no plano das leis e impostos) e questionamento constante. A casa tá ficando cheia? Tá, mas não tem tanto extremista assim a ponto de querer um governo “expulsor”. A idéia é regulamentar mais e cortar regalias oferecidas pelo Estado. Um outdoor de Ingrid Betancourt junto com um relógio que mostra que seu seqüestro se estende por 2743 dias se impõe na fachada da prefeitura (Hotel de Ville). Isso tem um significado maior. Hoje, nem a menina Isabella consegue ganhar destaque assim.


Beaubourg por fora


Do alto do Beaubourg pra fora.

Aproveitando o engajamento, vamos falar de cultura. O Beaubourg, vulgo Centre Georges Pompidou (todo mundo pronuncia Bubú), é um dos espaços mais fervilhantes de cultura desse lugar. Por dentro e por fora, já que na frente ficam artistas fazendo performances numa espécie de pátio-jardim, onde muitos ficam sentados, conversando ou lendo. Há dezenas de espaços públicos de qualidade, que são compreendidos e aproveitados como tal. O povo senta na grama, toma sol, anda na praça, empurra o filho no playground, leva o cachorro para andar sem coleira à noite. Ah, o Pompidou também bomba por ter vários espaços agradáveis com wi-fi grátis.



Louise Bourgeois fazia as honras da casa dessa vez, mas não deu pra ver muito. Já era tarde. Vimos as permanentes, mas foi um pedaço de colcha bordado por Louise que provocou mais, nele estava escrito com letras arredondadas: “I’ve been tô hell and back. And let me tell you: it was wonderful”


Enfim, para celebrar a rápida estada um passeio em Chatelet à noite, sob a lua cheia, que vimos crescer no Sahara e agora nos sorri na noite parisiense. Merci, infiniment merci.

domingo, 27 de abril de 2008

Por que o Marrocos vale a pena?

A primeira resposta a essa pergunta que me vem na cabeça é: porque poucas vezes me senti tão querido num país estrangeiro. Sim, não são todos os marroquinos que te vêem como um cifrão andante. Boa parte deles, mas não todos. E foi essa fatia da população o que mais me encantou no lugar. Alguns marroquinos, sejam negociantes ou não conseguem ter uma aura de serenidade e bondade a que não estamos acostumados. Leva um tempo até parar de desconfiar e entender a toada.


Grande mistura: deserto, montanha e um fim de tarde desses. Plage des Oudayas, Rabat.


Brincando de beduína no meio da barganha. Tudo para tentar vender.




A beleza dos detalhes, das entranhas.

Na seqüência penso na tradição, permeada pela cultura árabe e tudo o que desconhecemos. Esse foi um ponto que me fez questionar até que ponto vale sermos uma nação quase 100% cristã e o quanto não deixamos de absorver conteúdo de outras fronteiras espirituais. O som do chamado ecoando em cada canto de qualquer cidade seis vezes ao dia é um primeiro passo para entender como a reza é fundamental a eles. Essa relação sempre presente com a religião e a meditação, não presente na minha realidade paulistana.


Quem vai dizer que não tem amor nesse sorriso timido?

Aconteceu de entrar numa lojinha e perceber que, por trás do pequeno balcão o dono rezava e após perguntar sobre preços, ele voltou à oração. Pelo menos uma vez ao dia todo muçulmano reza na mesquita. Para entrar lá, o ritual é bem bonito. Tira-se o sapato e lava-se os pés numa fonte, sempre charmosa e forrada por mosaicos multi-coloridos. Em seguida vão rumo a um tapete onde se ajoelham e depois se curvam. Toda a oração é feita pelo imam (o “padre”) em alto e bom som para toda a redondeza, através de megafones instalados na torre da mesquita.


O ocidente no mundo árabe, com tom próprio

O Marrocos é um poço de desconhecido em que nos sentimos um Obelix ao nos banhar. É a síntese de muita coisa que imaginamos no mundo árabe, mas também uma resposta a muitas idéias pré-concebidas que temos desde sempre. O marroquino é uma mistura de baiano com turco da 25 de março. Do baiano tem a boa vida, um pouco da preguiça, o sorriso e aquela constante cara de “no problem”. Do turco, claro, o tesão sexual pela barganha e pelos negócios. Tem muito de Brasil, mas com uma outra roupagem, uma coisa mais rústica, mais bruta no sentido de ser um pais um pouco travado por seus ideais. Pelo menos já está anos luz na frente do Brasa no quesito turismo. Não que tenha uma rede turística que funcione impecavelmente, mas todos se esforçam no inglês. Francês é segunda língua oficial, depois do árabe.


E o futebol é a terceira língua. Palestra à beira-mar em Rabat.

Junto com a tradição e os rituais, vem também a imprevisibilidade do Marrocos. Tanto o tempo (em Fes chega a chover e fazer sol num intervalo de 15 minutos), quanto às situações. Num momento você pode estar barganhando e segundos depois espiando uma reza na mesquita por uma frestinha da porta (é proibido aos não-muçulmanos entrar e assistir um culto). Ou ainda estar vendo lojas de madeireiros e, de repente entrar numa portinha e cair dentro de um cemitério maravilhoso, com vista pro mar. Estar no meio de uma arapuca pega-turistas e achar um “museu do cinema” kistch, mas divertidíssimo.


Um museu de cinema no deserto, onde mais?


Só vi algo parecido em Trancoso.

Dentro do critério das coisas imprevisíveis eu coloco também a comida. A culinária local pode ser boa para uns e não interessante para outros, tudo entra naquela velha questão do gosto não se discute. E, pode apostar, você goste ou não, os quitutes dda terra do rei Mohammed Vi são quase como balas de uma metralhadora giratória das papilas gustativas. Muitas texturas diferentes, porque o tempero (especialmente das coisas salgadas) é muito parecido em todo lugar. Com uma facilidade surpreendente de fazer massas folhadas (herança da colonização francesa), os docinhos e rolos quentes são de cair o queixo. Os assados (normalmente na tajine, espécie de prato cônico) são sempre justos e saborosos. Quanto ao suco de laranja e grape-fruit, não tenho nenhuma outra definição a não ser: os melhores que já tomei na vida.


Grape-fruit, 5 reais cada fruta no Pão de Açúcar. 70 centavos um sucão aqui. Topa?


Mistura de camelo, boi, carneiro e frango. Onde mais? Quando de novo?

O Marrocos vale a pena porque ele não te deixa esperar, ele entrega o imprevisível, o inesperado. E entrega muito bem.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Da LewLara pro Sahara

Na véspera de embarcar na excursão me peguei rindo sozinho que nem besta ao empacotar as coisas para uma noite no deserto. Todo mundo alardeava sobre a noite congelante. Eu tava indo pro deserto com um monte de casaco, morrendo de medo de frio quando, de repente, veio na cabeça a eterna marchinha carnavalesca: Atravessando o deserto do Saara o sol estava quente e queimou a nossa cara / alá lá ô, ôôô / mas que calor ôôô.

Veja bem, vamos analisar a sabedoria popular.
“o sol estava quente” e “que calor ôôô” configuram um estado de temperatura elevadíssima, quase sufocante, certo? E eu estava indo para o referido lugar no dia seguinte com um monte de casaco. Porra, alguma coisa tava errada! Ou o povo (e o Lamartine Babo) é burro ou eu tava confundindo Alasca com Saara. Bermuda na mala. Simbora!

A van viajou o dia inteiro pelos Atlas (como contei no post abaixo) e depois pelo Draa. 11 horas depois de deixar a agência de turismo em Marrakesh eu estava cara a cara com a fera ruminante. Ou melhor, 14 feras ruminantes. Amarrados em fileiras de 5 – 5 – 4, os camelos esperavam sentados a vez de se levantar com um turista na lomba. A ordem para levar pouca coisa pôs em cheque a nossa montanha de casaco e logo fomos avisados de que haveriam cobertores à beça na tenda. Mochilinha e olhe lá.



O fato de os camelos estarem amarrados um na cauda do outro e de serem puxados por um beduíno que vai caminhando, dá a sensação de estar numa filial saariana da Disney. Mas aos poucos você saca que é aquilo mesmo e quem tem mais é que curtir. Pelo menos estava mais no Saara do que um tiozão dentro do brinquedo da Múmia, no Universal Studios de Orlando.





Visual encantador por todo o caminho. O sol se pondo e a lua nascendo na frente.




O lance da passada do camelo é sacolejar com ele, deixar o corpo bem mole. Funcionou até certo ponto. Após duas horinhas de gingado puro cheguei meio dolorido, mas depois de umas torções e uns ássanas bem feitos fiquei leve. Rolou um constrangimento ao fazer um balássana na frente de um beduíno dentro da tenda. Na aula de yoga do prof. André sempre me sentia meio muçulmano, adoro esse ássana. Talvez por ser o mais fácil e aliviante.





Sentamos todos em volta do lampião a gás na tenda. Hassan, de turbante vermelho e azul e beduíno mor do grupo, foi perguntando o nome e o país de cada um. Lógico, houve a réplica:
- Felipe, Brasil.
- Ronaldinhô!


Com uma tagine (prato único do Marrocos – só tem isso pra comer aqui – é um cozido dentro de um cone de barro) de frango com legumes fizemos a barriga e sujamos as calças, pois não havia garfos, nem pratos e nem luz. Por falar em luz, fomos aprender sobre as estrelas com os homens do deserto. Confesso que eu esperava uma noite estrelada das Arábias, mas a lua estava quase cheia, projetando as sombras nas dunas. Foi uma bela noite de lua. Temperatura amena e nada do super frio praguejado. Fiquei de camiseta até 10 da noite.



O nome “Sahara” (com tônica arrastada no rrrára) é muito forte e era repetido quase que à exaustão pelos beduínos. É intenso, vibrante, tem uma carga de aventura, coragem e desbravamento. A gente estava a 2 horas de camelo de uma vila, não era o fim do mundo. Dizer que ter estado ali era ter conhecido o Saara é que nem passar uma noite em Trancoso e dizer que conheceu o Nordeste. Mas com a força do nome e areia nos pés você vai se convencendo. Os caras sabiam vender o peixe deles, e mesmo sabendo que a gente não tava embrenhado no coração do deserto deu um gostinho de liberdade considerável.



Com os pés na areia, sentia entre os dedos os grãos mais finos que já tocaram minha pele. As solas afundavam facilmente e pé dentro da areia encontra calor. Todos se sentaram sobre uma pequena duna e enterraram os pés. Dois beduínos chegaram, um com um tamborete e outro com um galão de água vazio. Começaram a cantar. A melodia abraça as dunas e meu corpo. Fecho os olhos e sinto a luz da lua assoprando energia boa. Mesmo sem entender sequer uma palavra do que cantavam me sentia na música, em êxtase. Foi o auge da minha noite saariana.


Logo depois, os dois cansaram de tocar e começaram a passar os instrumentos pra nós, daí virou a festa da caqui. Não saía nenhum som decente até o tambor chegar na minha mão e eu sentir meu gene musical Mortara aflorar e assustar a todos. Fui imediatamente proibido de tocar, inclusive por mim.

Sem tempestades de areia (o vento assoprava uns grãos e sempre tinha que fechar olhos e boca) nem roncos alheios, a noite virou bem, mas acordei com frio. Tatiana, uma russo-americana muito gente fina, me cobriu e cochilei mais um pouco. Depois era hora das necessidades fisiológicas matinais. Uma vez, no Hawaii, o fotógrafo-estrela da Fluir, Tony Fleury, me disse:
- Todo mundo é igual de manhã na fila do banheiro.
E quatro anos depois, do Hawaii pro Saara, o ditado se aplicava. Como a única coisa que vi alinhada foram os camelos, deduzi que teria que me virar. Achei uma dunazinha livre e fiz um xixi inesquecível com o sol nascente combatendo o frio.



É engraçado como é a areia saariana. Ela some rápido entre os dedos, mas fica fácil nas roupas, é mais fina que a nossa areia, é um amontoado de pó. Você fica sujo, ainda bem que eu não tava interessado em pegar ninguém... heheh. Mas é uma sujeira estranha, pois me senti menos sujo do que durante as 48 horas que fiquei sem tomar banho entre Fes e Marrakesh.


Na volta, bom entendimento com o camelo, sem dores aparentes. Parada para higiene, inclusive bucal, numa loja de quiquilharias, digo, antiguidades. Depois visita a uma Kasbah picareta, a de Ouarzazate. Logo ali na frente tinha um museu de cinema, entramos por uns 5 reais. Um lugar bem kistch e até bobo, mas tinha registros e fotos de produções hollywoodianas filmadas por lá (entre as mais famosas, Lawrence das Arábias, Babel e Gladiador). Mas o mais legal foram os cenários, que ficavam lá mesmo. Tinha uma sala do trono do rei Salomão, um pátio da Judéia, tipo desses filmes do Cinema em Casa, do SBT.



O passeio de camelo começou a doer, tanto nas costas, como nas pernas. Não sei montar animal, sei que poderia ter caminhado uns 10 km numa buena. Mas a experiência sempre vale a pena e o mais louco é que depois de camelar por quase 3 anos na Lew’Lara, lá estava eu camelando no Saara.

(rimazinha bem barata pra terminar essa jornada)

Encontrando-se no Atlas

Se Marrakesh teve um quê de decepção por ser uma cidade muito comospolita (ou seria esquizofrênica?), ela ganhou num ponto: é o hub mais importante para fazer excursões e conhecer os cantos mais exóticos do Marrocos.
Passeios de 1 a 4 dias se vendem por todas as esquinas e com diversas opções de roteiros e coisas a ver. A variedade de paisagens e atrações espanta. De praia para surfar até neve para fazer snow. De cascata para nadar a deserto para ver miragem. Menu completíssimo.

Entramos numa agência que pareceu grande, a Sahara Expédition. Como o nome bem diz, praia a gente vai no Brasil e neve a gente vê na Zoropa. Fomos é comer areia no célebre deserto, mas antes atravessaríamos os Atlas, a maior cadeia de montanhas africana. O visual prometia, ainda mais depois de ter sido alardeado como o cenário do filme Babel, entre outros. E realmente cumpriu, pois a cada curva da sinuosíssima estrada (não pegamos nenhuma reta com mais de 700m) todos colavam suas câmeras na janela. Ainda bem que fomos na janela do lado certo. O dedo da minha mãe gastou.

E como a paisagem vai mudando!



Éramos 10 no grupo. 8 jovens americanos com idade entre 19 e 21 anos e nós. Um povo gente fina, educados e super viajados. Eles faziam intercâmbio com suas faculdades na França e na Irlanda, e tiraram o spring break para conhecer um país islâmico. Confesso que achei uma senhora atitude essa deles, e me fez acreditar na construção de um Estados Unidos menos burro e mais consciente de que o mundo não é tão umbigo assim. Deu um gostinho saboroso de uma América menos careta e mais internacional no futuro. Essa eh a mão da Mariah, pintada com henna de 3 semanas.



Os Atlas tem picos que passam dos 4 mil metros e diversos a mais de 3 mil. Dá uma tonturinha de leve quando chega lá em cima da montanha, perto do “pass”, que é onde se atravessa de um lado ao outro. Mas o enjôo vem mesmo pela quantidade de curva e pela velocidade excessiva de nosso motorista, cujos cabelos e olheiras eram sósias dos do Saddam Hussein quando foi preso. A neve no alto das montanhas inspira e a pedra do resto da montanha faz refletir sobre os rios secos que passam no vales.



Uma parte do pessoal tirava um cochilo, mas sem sono preferi colocar um “Tim Maia ao vivo” no iPod e ficar bem acordado. A cada intervenção do gordinho eu ria e me lembrava de trechos do livro do Nelson Motta. Me dê motivos tocou e retocou diante dos abismos do Atlas.





As paradas foram se sucedendo até a hora do almoço. O motorista parou num lugar caro (que deve pagar uma caixinha a ele, bien sûr) e todo mundo se reuniu e resolveu achar um outro lugar. Como eu entendia melhor o francês, tomei a ponta das negociações para sentarmos num restaurante e consegui uma barganha boa, com isenção de 10%, comandas individuais e sobremesa grátis. Pedimos o rango, que “demorou mas chegou logo”, como diria meu pai.





Visitamos uma belíssima Kasbah, que é um tipo de fortaleza moura, protegida pela UNESCO. Lugar lindíssimo num valezinho tomado por comerciantes, que vendiam e trocavam desde turbantes até colares por uma caneta BIC ou um lápis. Pena que eu só tinha uma caneta da Lew’Lara, e que era com ela que escrevia no diário.





O vale do Drâa é um lugar esplêndido, de onde vem a maior parte das tâmaras daqui. As tamareiras, que são um tipo de palmeira, brotam por todo o horizonte, dando a impressão de um oásis sem fim.

E por falar em fim, esse texto chega ao fim, porque a viagem continua até Zagora, porta de entrada para a fatia marroquina do deserto do Saara, pertinho da Argélia.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Considerações sobre os marroquinos

“Um povo faz um país”, disse alguém certa vez. No caso do Marrocos isso é verdade, mas uma coisa por aqui é certa: a religião e o comércio dão o tom da nação. Não que seja uma coisa ao estilo Edir Macedo ou RR Soares, que conseguem vender Deus embalado na televisão. Muito pelo contrário, a negociação no reino do Marrocos se dá às claras, pessoalmente e com pausas para a reza.

Fato número 1: todo marroquino é comerciante e se chama Mohammed, Ahmed ou Abdu. Se não se chama assim, então foi enganado pela mãe. Ah, e a mãe é uma figura muito importante na vida do marroquino. Na verdade, ela é uma figura ausente, já que todos são órfãos, pois alguma vez mammah foi sua mais preciosa mercadoria. Com a velocidade que um nativo tenta te vender alguma coisa não é difícil acreditar que ele já deva ter feito um bom negócio em troca de sua progenitora.

Logo, o pai é tudo. Antes de aprender a falar, um bebê local já é pós graduado em negociação. Sabe trocar chupeta por silêncio e leite por sorriso. Itens de série. O conceito de super-faturamento é ensinado sob o véu de “quer pagar quanto”. Prova cabal disso é a ausência absoluta de etiquetas de preço nos produtos. Depois escrevem num recibo qualquer valor acima do verdadeiro, tal qual Dr.Paulo Salim Maluf. Rouba, mas faz. Recibo, claro.

Resuminho: O babba ensina que negociar nada mais é do que conseguir vender algo a um cliente por um preço que ele não deveria estar pagando.

Dito tudo isso, é elementar constatar que o Parlamento do Marrocos e a Fecomércio funcionam no mesmo lugar. E que seu Rei, Mohammed VI, é o feirante-mor, já que ao assumir o trono anos atrás vendeu diversas estatais a grupos europeus. Até aí, tudo bem, pois como bom marroquino venderia até a mãe, se a fachada da rainha valesse um merréu. Mas o todo-poderoso-feirante enriqueceu mais subitamente que o Rafinha do BBB, já que seu pai era celebrado como um rei do povo, sem ostentações nem frescuras. Nesse caso a genética descrita no parágrafo acima falhou.

E já que falamos de mãe, vamos olhar a mulher do marroquino e sua relação com ela. Pelos cantos das cidades, principalmente nos finais de tarde, é comum ver cavalheiros cortejando nobres damas. Sempre a uma distância de segurança, de respeito. Mulher aqui é pra casar, tirando as que gemem nos filmes pornôs, mercadoria valiosa e oculta nas banquinhas de DVD pirata. Quando não é para casar e nem para escutar gemer, serve como pinico: cantadinhas baixas ao pé do ouvido nos mercados.

E por aqui não tem essa historia de mulher magra, não senhor. Finura é lá na Somália, porque aqui nesse canto da África os bruxos conferem o tamanho do dedinho sempre.

EM TEMPO: Aviso às gordinhas do Brasil: tem um mercado fervilhando aqui no reino. Nessa terra vocês serão tratadas como merecem, enchidas de jóias e presentes. De burcas, digo, lindos véus, e muito dinheiro para fazer as compras. Por sinal, no que diz respeito aos alimentos, tudo é feito com pelo menos meio saco de açúcar, para que possam manter a forma que agrada ao habbibi. E pode crer que vai ter que descontar muito no doce, porque na prática nenhum homem consegue fechar o lojinha e ir pro casa. Prova disso: nem um beijinho na boca eu vi por aqui.

Outra vertente da libido masculina por aqui tange às cocotas européias. Tenham elas 20 ou 80 anos. Sim, o Ahmed médio (alusão ao Homer Simpson médio, enunciado por William Bonner) tem aparência moura, estatura média (sempre menor que a Gisele Bündchen) e um secreto desejo pela aposentadoria precoce. Ao ver uma fêmea da espécie europea-ricum-pirañacium os olhos brilham mais que os das tias freqüentadoras do Clube das Mulheres ao ver o primeiro bombeiro de sunga. No fundo, todo mundo quer mais é fazer um pé de meia e parar de negociar. A jovem de 70 anos vira a Angelina Jolie quando deixa mostrar “sem querer” um maço de Dirhams (o real local, vale maiomenos a mema merreca) e um passaporte europeu. Se casar, abre filial do lojinha em Paris, Barcelona ou Marselha. E ainda ganha dimdim do Sarkozy e do Zapatero.

Belo negócio, hein Abdu?

Miami + 25 + Bangladesh = Marrakesh


Como ficou bem claro no último post, a chegada a Marrakesh foi bastante conturbada. O roubo da mochila da minha mãe, a enchecao de saco do B.O. e o hotel meio extorsivo (tinha que pagar todo dia quando acordava, sob um eterno olhar de desconfiança dos guris da recepção) deixaram a cidade mais cinza pra gente, Nem o céu azul que dominou a maior parte dos dias colocou um sorriso fixo em nossos rostos.

Tudo o que pulsa em Marrakesh fica em volta da praça Djemaa La Fna, a região mais turística. A praça é um lugar lotado de gente a partir da tarde e onde se pode comprar todo tipo de coisa. Desde suco de tamarindo (salve LM e a Turma do Chaves!) e grape-fruit até uma fotinho ao lado de uma assustadora naja. Sim, tanto aqui como na Consolação existem homens que fazem a cobra subir. Além dos freaks, muitas barracas de quinquilharias para turistas e algumas excelentes bancas de comida. O assunto “estômago no Marrocos” será tema de um próximo texto.


Bom, dito que nosso hotel ficava a uns 200m do point X da cidade e que passamos boas horas por lá, acabou o que falar de Marrakesh. Pois nas adjacências da praça, incluindo nossa ruela, tudo é um horror, um caos. O aspecto geral é uma mistura de Miami, Bangladesh e 25 de março. Coisa ruim. A capital cubana nos EUA aparece na forma de banquinhas de souvenir e bancos (de câmbio) chiques. O traço asiático vem na forma do constante e amedrontador transito veloz de mobiletes e scooters entre os turistas na rua de pedestres. E a filial do Líbano em SP aparece nos camelôs que duelam por um metro quadrado para expor suas muambas (adoro essa palavra; daria um belo nome de produto em qualquer lugar do mundo). Moral da história: não perca mais de 2 dias na cidade, fique o máximo possível na Djemaa La Fna, coma um pouco de tudo.

Os museus, os palácios e todo o blábláblá pra turista é o mais belo caô, em bom carioquês. Tudo meio surrado e pouco legítimo perto do que vimos em Fes. Não perca mais de 2 dias na cidade, fique o máximo possível na Djemaa La Fna, coma um pouco de tudo. Até o hamman, que é a tradicional casa de banho e sauna conseguiu ser picareta. Fui lá na esperança de um pouquinho de originalidade. Até pagaria os 25 euros pro pacotão completo. Estava esperando num sofazinho quando o garotão que me mostrou o lugar pegou um tubo de Bom Ar em cada mão e empestiou o lugar. Honrei o conceito do projeto e FUI!
Enfim, agora acabou Marrakesh.

PS: compramos uma máquina nova, chance de haver mais fotos!
PS 2/ postzinho caprichado esse, hein?

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Praticamente um album inteiro

Estrada rumo a Fes, um dos muitos relevos dessa terra...

Duas fotinhos!

Curtume de Fes, onde tingem o couro. Um dos ingredientes eh coco de pombo, entao a coisa fede pacas. eh bem bonito de olhar
PS: como as fotos estao em alta e as conexoes dos cybers sao em lenta, tah dificil fazer upload delas. Mais uma vitoria!

Uma fotinho!

Detalhe da medrassa de Fes, que é onde os jovens imams aprendem o alcorao.

Do céu ao inferno em 12 horas

(tirado na íntegra do caderno de bordo)

Que alegria é viajar!
Até quando as coisas vão de mal a pior há um aprendizado, um ponto positivo. A nossa saída de Fes começou com computador travando e internet caindo no cybercafé perto do hotel. Depois, mandamos um sanduba meia boca (pois já tava tudo meio fechando) numa sorveteria cafona chamada Disney Channel. Isso mesmo, filial de Orlando no Maghreb.

Nosso trem só partiria à 01h50 da madruga. Com uma solidariedade descomunal, Roichid, o tiozinho do café da manhã da pousada de Fes, descolou 2 colchonetes e cobertores e nos deixou dormindo até 00h15 nos corredores. Tava um frio da muléstia e ele foi muito arretado com a gente deixando-nos tirar um cochilo sem pagar e nos acordando para não perdermos a hora. Eu já estava no soninho embalado e iria embora até de manhã. Roichid ainda nos ajudou a levar a montanha de bagagem (é, eu saí de Sampa preparado pra ficar um ano fora e minha mãe num é de comprar pouco...) até o táxi e eu fiquei embasbaco como uma criatura poderia ser tão fofa e generosa com o próximo.

Na estação, entre paginas de Tim Maia e temperatura de 10 graus (tudo ao ar livre), bati um papo com um cara de Casablanca que tinha acabado de voltar da China, com muamba pra dedéu, digo, sapatos de mulher.

Meia hora antes da partida nos alojamos no nosso vagão de 2a classe, que tinha sido bem recomendado por Roichid e pelo Lonely Planet. O maior aprendizado nessa etapa de subir no trem foi: é uma merda viajar carregado.

À medida em que deslizava pelos trilhos, o trem nos brindava com uma temperatura congelante dentro do vagão. Algo entre 5 e 8o e a gente não tava preparado pruma friaca desse porte. Encolhidos e grudados um no outro, tentávamos fazer calor. Quase em vão, pois um vento entrava cortante e sem dó por alguma fresta.

Como já estávamos viajando há algumas horas e já havíamos parado em algumas cidades, pensei que pessoas poderiam ter descido e haveria cabine fechada para nós no vagão de trás. Achei uma e depois de muita força e ajuda de dois caras conseguimos nos mudar. Depois de nos acomodarmos na nova cabine, com porta e só nós, o que dava uma maior sensação de conforto e segurança, não conseguíamos controlar o frio. Minha mãe tava bem mal, tremia demais e cheguei a descascar um Le Monde que ganhamos na Air France e jogar as folhas sobre ela. Nos apertamos como deu e lá pelas 5h20 conseguimos dormir. Pof!
Acordo pelas 6h15 com um grito:
- Felipe, minha bolsa sumiu!

Uma breve espiada sob o banco e a porta aberta concluíram a sentença: levaram a bolsa, encostada ao corpo dela. Saí correndo pelo vagão. Estávamos parados em Casablanca. Cheguei a descer do trem e gritar, mas não vi ninguém suspeito. Um tiozinho chegou a descer por alguns instantes para tentar me ajudar, mas tomou um capote feio. Ajudei ele a levantar e subir no trem já em movimento. Tipo cena de filme, eu tava completamente adrenado e sonado, sensação estranha. Raiva.

E nada! Tudo perdido. Graças a Alá, depois de 52 anos viajando pelo mundo, dona Maria Lucia pela primeira vez não levou o passaporte na mochila e o colocou numa bolsinha colada ao corpo, junto com toda a nossa grana.
Minha mochila, com computador, iPod, livros, e mais alguma coisa, estava super na cara, num banco vazio e eles não levaram. Tipo milagre. Passaporte e cash tavam no corpo. Acho que a proteção contra mau olhado que a Maria colocou quando me deu essa mochila no Natal deu muita sorte e funcionou. Obrigado, Maria.
Um alívio, um aprendizado. Mais um.

Hora de fazer um balanço sobre o que tinha na mochila da minha mãe:
- Câmera digital, a nossa única. (ou seja, fotos por aqui, por enquanto só as de Fes)
- 100 euros
- 1700 Dihams (dim dim daqui, uns 150 euros)
- Carteira de habilitação
- Passaporte vencido, mas com visto americano valido até 2011
- Agenda de telefone com todos os números que usaríamos no resto da trip

Chegamos em Marrakesh, cais bonito, arejado, sem o aperto de Fes. Banheiro limpo e com papel higiênico, raro. Perguntamos pela dalegacia. Disseram para ir na central, fomos. Desce do táxi todas as malas. 5 minutos depois nos dizem que não é lá, que devemos ir para a delegacia do 1o arrondissement. Custa a vir um táxi, vem, embarcamos. Chegamos nessa delega, os caras falam que tem que ir na mais próxima de onde ocorreu o fato, que é no 8o arrondissement. Porra! Que saco! Lá vamo nos pro 8o e os caras chegam lá e deixam a gente umas 3 horas esperando olhando para 15 de fotos diferentes do rei Mohamed VI. Já vi até o rei de fraldas.

Interessante que os canas do Marrocos tem a mesma cara dos do Brasil, a mesma pinta de canastrão, malandro e corruptível.
E fala, fala, fala... estávamos chegando perto do tão sonhado B.O. para depois pedir segunda via dos documentos perdidos no Brasil. Foi quando, ao imprimir uma cópia em árabe, perguntei se não poderia fazer uma em francês para nós. Eles disseram que não porque a língua oficial aqui é o árabe, segundo ordens do procurador do rei, um tipo de 1o ministro. No mesmo grau de importância do profeta Mohamed.

Por fim, fizeram um documento de 5 linhas, escrito sobre uma folha de papel manteiga recortada com régua com o número da queixa e um carimbo da delegacia.
Epa, péra lá!
Pedi uma xérox daquilo que tava impresso, timbrado e com cara de B.O. e o cara disse que não. Dei risada e sinceramente achei que o cara tava brincando. Apesar da demora, eles estavam sendo gentis com a gente e o inspetor chefinho tinha familiares no Brasil e tal... rolava uma simpatia. Só que ele não achou nada divertido, deu uma ameaçada e me disse para procurar a minha embaixada e que eles solicitariam a delegacia uma cópia.

Burrocracia made in Marrocos.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Notas sobre Fes

# “Pelo prazer dos olhos”, assim dizem os pilantras que tocam as arapucas “pega-turista”para tentar te levar pra ver a fabricação de artesanato nas quebradinhas das vielas. A ordem é bem essa mesma: primeiro fisga os olhos e depois seu bolso.


# Vítima da multiplicidade étnica desse caldeirão, já fui chamado de Ali Babá (por causa da barba, ainda rala para os padrões do Passoka e do Champs), de espanhol, de italiano, de marroquino nativo (confesso que adorei; o cara demorou para entender que eu não falava árabe; aconteceu mais de uma vez), de francês, claro, e até de “branco como o queijo lá de casa”. Esse tava me tirando...


# Burrada aqui é um termo literal. Nas vielas, muitas vezes com 2 metros de larguras, você tem que ficar muito atentos aos gritos (muitas vezes sussurros) de “attention”. Senão leva uma burrada nas costas. E, dependendo da carga, pode machucar bem...


# Coisas que não vimos em Fes:
- Gelo
- Rato (já que tem gato em todo canto!)
- Cerveja
- Pizza
- Hambúrguer
- Beijo na boca (no máximo, uma mãozinha dada)
- Biquíni ou maiô
- Perna de mulher
- Camelo
- Mulheres nativas em cafés


# Dado meu apreço pela saborosíssima carne de camelo, já cogito aceitar propostas que envolvam mais de cem quadrúpedes da espécie supracitada na troca da mão da senhora minha mãe.
Assim, se eu vender a metade dos bichinhos terei grana suficiente para trazer os amigos para uma churrascada na Medina. Que tal? E mainha ainda acharia alguém para bancar seus pratos e bijoux. É o ganha-ganha-ganha (alô galera da Lew!) do oriente!


# Além da bela luz que cerca as entranhas da Medina, o céu fica mais feliz e maroto com as revoadas de andorinhas que, no final da tarde, voltam para seus ninhos, no muro que cerca a vila.


# Em Fes ainda não vi (só comi...) camelo, já camelô...


# Animada com a possibilidade de comprar um belo álbum de fotografias que viu na vitrine de uma papelaria, mamãe não hesitou em perguntar o preço daquele álbum de capa tão bela. Mas a resposta não veio bem como ela esperava:
- É um livro sagrado, senhora. É o alcorão.
Não pude conter o riso, nem minha mãe, nem a moça séria do balcão. Gargalhamos pela calçada sob um sol doce.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Quando um cego volta a enxergar

Torre da medrassa de Fes

Uma novidade atrás de outra, uma montanha de sentidos a ser escalada. A chegada à Fes (aqui dizem “Fês”) se mostrou para mim a resposta conclusiva à pergunta inicial que eu tinha quando idealizei essa viagem: será que não vimos tudo ainda?

Não. Longe disso, há um deserto de sensações, um horizonte de realidade e um mar de experiências a navegar perpetuamente. O Marrocos foi para mim a materialização do oriente como nos contos Shérazade, poder ser Aladin em 2008. O cenário existe, as pessoas existem e o clima parece que nunca acabará.


Fes tem sua essência dentro da Medina, que é a parte dentro dos muros, que datam de 1300 D.C. Lógico, tudo já foi meio reconstruído, restaurado e tal, mas o pó é permanente e aparência antiga prevalece. A cidade nova tem prédinhos de 4 andares como Paris, todos recém construídos e um look impecável. Isso a gente vê na Marginal Pinheiros também.

O que grita, o que é não-convencional é a Medina, essa cidade medieval, recortada de becos e vielas onde descem e sobem pessoas e burros. Muito po. As laterais são forradas de comércio, com muitas variedade. As profissões são medievais, basta esticar os olhos para dentro dos becos parar ver ferreiros fazendo panelas, sapateiros costurando, ceramistas pintando o “bleu-de-Fes” (o tipo de cerâmica local, que não risca, não quebra e não vai para a sua casa sem um bom punhado de Dirham, a moeda local). Tudo ali, diante dos olhos. Vende-se galinha viva, pesa-se a galinha diante dos olhos. Vende-se ramos de hortelã para o chá da tarde – aqui é A bebida oficial, com um monte de folha massacrada no fundo e açúcar para fazer inveja a qualquer tubaína. Se quiser comprar 1 cigarro, tem. Se quiser 1 azeitona, tem. Tem de tudo e na quantidade que quiser.

O grande “ó” do borogodó de Fes é mesmo a medina e toda a vida que acontece dentro dela. Mas nem tudo são flores lá dentro, por supuesto. Quando alguma coisa te interessa você pode estar encrencado, pois não é nem um pouco simples comprar alguma coisa num lugar onde quase nada tem preço. É aquela velha coisa da pechincha, mas tem horas que é muuuuuuuuuito mala negociar com eles. Tem horas que você só quer pagar e ir embora e o cara dá uma de Fabiano Augusto, das Casas Bahia:
- quer pagar quanto?
Porra, quero pagar 10 reais num prato que vale 50, é isso que eu quero. Daí começa o blábláblá do cara, explicando a procedência até do pincel com que o prato foi pintado. Mala total. Eu só queria comprar um prato, mas agora quero sair da sua loja. E o approach todo é bem agressivo para você ver a loja. O nosso conceito de “tô só dando uma olhadinha” simplesmente no hay.

Mas que fique claro, não tem malicia e maldade neles. Pelo contrário, depois de ser abordado desse jeito umas 50 vezes você percebe que isso é um hábito, algo intrínseco a cultura deles. Esse é o valor da negociação, essa é a forma como se faz aqui. Se agrada, espanta ou atrai o turista ocidental, isso é problema deles e eles escolhem como querem fazer. Com um pouco de paciência e calma já dá pra perceber uma bondade acolhedora e incondicional da parte deles. A religião muçulmana prega a ajuda ao próximo como virtude máxima, depois da crença em Alá e no profeta Maomé.

Logo no primeiro dia de andanças, contrariando as regras ditas acima, caímos na loja de louças de Ahmed, um senhorzinho muito iluminado. Com toda a calma do mundo ele nos deixou ver seu produto, explicou como eram queimadas no forno e, só depois de perguntarmos, disse os preços – por sinal, vimos mais tarde – muito baratos. Não bastasse isso, outra coisa nos fez sentir mais acolhidos. Ele não só sabia que o samba era o pais do futebol, carnaval, café e das mulheres. Ahmed, de sorriso fácil e banguela, se revelou integrante do único grupo de capoeira de Fes. Cantarolou algumas melodias e me fez cair o queixo. Não bastasse isso, ficou perguntando se sua pronúncia de palavras como amigo, obrigado e saudade estava corretas. Obrigado, Ahmed, de um tratamento e respeito como o seu já estamos sentindo saudade.

Junto com Ahmed tem também o tiozinho que consertas TV’s e rádios. Esse cara foi um anjo pois cuidou da minha mãe anteontem diante de sua loja enquanto eu procurava hospedagem e hoje ao perguntarmos se ele tinha um adaptador de tomada, ele pulou a bancada de sua loja, foi atrás de uma com um colega e nos deu. E não havia quem o convencesse a aceitar uma moeda nossa. Já tá na mão um chaveirinho do Brasil para levar amanhã. Bondade a torto e a direito.

Duas ou três observações sobre a chegada por aqui. Ao descer do táxi fomos enquadrados por uma montanha de gente oferecendo hospedagem, lógico, das mais caras, com aparentes comissões monstruosas para padrões locais. Com 5 nomes de hotéis indicados pelo Lonely Planet fizemos cara de certeza e fomos perguntando, com a multidão de malas (figurativo) atrás da gente. Chegamos num, custava 450 Dh, uns 120 reais. Prédio lindo, um antigo lar de sultões, que foi transformado no que chamam de riad, uma espécie de pousada chique. Mas o quarto proposto era no térreo bem de frente para o pátio, o que nos incomodaria. Tentaram pechinchar, dissemos que não e fomos a caça. Nessa loucura, nas vielas apertadas não vi um artesão expondo no chão e pisei sobre 4 cinzeiros. Um homem ao meu lado viu e queria pagar metade do prejuízo junto (!). Me disse que na religião deles era assim e tal, mas eu fiquei com medo de ficar devendo um favor a um cara que eu nunca tinha visto e não reconheceria. Assim, achei melhor pagar os 20 Dh (5 reais) de prejuízo, pedir desculpas e dar um sorriso.

Depois de 45 minutos zanzando e me perdendo pelas vielas achei duas opções, o marajá dos marajás por 650Dh ou o básico do básico por 170Dh (uns 40 reais) com café da manhã. Mamãe resmungou, mas aqui estamos nos para nossa terceira noite no hotel Cascade, de mochileiros e malucos around the world. O entalhador hoje descobriu onde estávamos apenas pelo preço, sinal de que aqui é mesmo o mais barato. O banheiro é sujo e fora do quarto, o chuveiro é frio e apertado (tem um aquecedor em algumas – duas ou três – horas do dia), e o quarto não tem toalhas ou alguma janela decente. Mas achamos o ritmo e estamos bem habituados.

Comida é uma beleza e quem me conhece sabe que eu sou mais que chegado numa junky food. Junky de verdade, eu não tô falando de Mc Donalds’s, mas de coxinha de beira de estrada, ovo rosa, pastel de ontem, esse naipe de tóxico... Marruecos já se mostrou um verdadeiro templo para religião. Tem de tudo baratinho na quebrada. Espetinho de kafta (de boi, sempre, muçulmanos não comem porco), bolinhos de amedoim (lembrei do Passoka, sure), docinhos mil, suco de pistache (ainda não tomei), chá de menta...
Mas a estrela da viela é sem dúivida nenhuma o sanduba de carne de camelo. Eu estava meio cético, pois o point da região tem uma cabeça de camelo (de verdade!) empalhada bem ao lado do rango. Confesso que não dá muito apetite. Mas hoje, por volta das 20h30, depois de mais de 9hs camelando pela medina, achei mais que justo.
Além de muito barato (15dh, uns R$ 3,50), o negócio é bão mesmo! Tem um gostinho de carne de carne moída de hambúrguer com fígado. Recomendo e coloco fotinhos.

Com todos os sentidos aflorando e voltando a enxergar que o mundo pode ser muito, mas muito diferente do que eu imaginava, vou dormir lendo mais Tim Maia que tá bom demais!

Chukram (obrigado, por aqui) e Salam - paz e proteção (se divirtam com os trocadalhos) - a todos.

PS: ainda nao consegui pôstar mais fotos , o cyber aqui eh bem complexo, com teclado em arabe! Vou tentando, aproveitando a sexta feira que qaui eh como o nosso domingo

quarta-feira, 9 de abril de 2008

De Cumbica ao Carlão

Aeroporto é meio mercado central, meio estação da Sé. Um lugar excêntrico, que mistura gente de todo tipo. É engraçado, mas dá muito na cara quem tá indo viajar pra se estabelecer. Em Cumbica vi uma meia dúzia que eu apostaria uma quentinha de cadeia que tá indo pra Zoropa pra tentar mudar de vida. Incluindo dois travecos velhos que vieram no meu vôo. Esses eu não tenho dúvidas, Paris é mesmo um luuuuuuuuuuuuxo. Ouvi até uma menina comentar para o colega de poltrona enquanto levantava rumo ao corredor:
- Ai, nem acredito. Isso aqui é tudo!

Outro detalhe interessante, (realmente um detalhe, já que uma pessoa de 1,40m pode passar batida aos olhos de uma com 1,87m de altura) foi a Daiane do Santos que estava alguma fileiras na minha frente.
Não, não tirei foto. E tô contando mesmo com esse monte de palavra pra vocês acreditarem se quiser. Bicho, ela é minúscula. Tem o porte de uma menina de 12 anos. Minha prima Carolina de 11 tem o mesmo shape! Mas Daiane tem 20 ou mais já. Deu vontade de dar um pedala e falar: “duplo twist carpado!”

Bom, poltrona apertada pacas. Só consegui cruzar as pernas 11 horas depois. Comidinha ruim, clichê, mas a carne até que era um picadinho saboroso. Filminhos meia bomba, “PS: Eu te amo” e “Eu sou a lenda”. Nesse, a Alice Braga até que manda bem e dá uma melhorada nesse quase remake de “Guerra dos Mundos” do Spielberg, com Tom Cruise (podreee!)

A travessia atlântica teve apenas 2 horas de pestana, nas outras enriqueci com capítulos de Friends, CSI e uma bem produzida série françoise de reportagens sobre ilhas francófonas no Pacífico Sul.

E Tim Maia, muuuuuuuuuuito Tim Maia. O livro do Nelson Motta que eu faturei num rolo com o Ricardinho Campeão tá me enchendo de bom humor e precoces saudades. “O gordo, se beija não penetra. E se penetra não beija”. Aforismos incomparáveis.

Saída do Boeing naquele corredor, a largata. Bicho, mó friaca! De cara já vi que lá dentro tava saindo fumacinha da boca! Nunca vi isso, fumacinha em lugar fechado só sauna... E controle de passaporte bem ali na frente com uns coxinhas mal encarados. Esse aeroporto do general Carlos da Gália é meio belicoso mesmo.

Rolê de buzum falastrão pelo Carlão até outro terminal, uma Perrier de 3,15E depois, agora estamos largados numa sala de espera pra embarcar pro Marrocos. Vou colocar o Tim no banco de reservas e escalar o Lonely Planet pra ver as opções de fuga de Rabat para Fés. Ops, acabei de ver que o stand de play station 3 aqui atrás é grátis. Difícil decisão...

domingo, 6 de abril de 2008

Sabe quando você pensa "agora vai"?

Pois é, parece que a cada puxão, que a cada apertão ela dizia que tava mais afim de sair desse quarto empoeirado e comer poeira alhures. São mais de 01h30, e minha esposa, a mochila, tá tirando um cochilo antes de cair no mundo amanhã.

Confesso que a ficha não caiu nem um pouco ainda. Mesmo sabendo que tudo o que tenho feito tem sido o último. O último almoço em família. O último abraço nos amigos. O último telefonema de uma pessoa que você gosta.

... O último post no Brasil?

sábado, 5 de abril de 2008

O mundo é bão, Sebastião

A facilidade com que versos se encaixam nos contextos do dia-a-dia é algo que sempre me intriga. Por que aquela vira a música do momento? Por que é a nossa música? O que faz uma música ser boa? A melodia? A letra?
Ou será uma combinação das duas coisas que nos dá uma estranha sensação de proximidade e ligação com algum tema, pessoa ou momento?

"O mundo é feito de idéias", diz Nando Reis nessa música. Não sei se é porque estou no meio da arrumação da mochila, sem muita idéia de quanta roupa, calçado, livros ou remédios, mas acho que esse som tem tudo a ver com o momento.

A letra ensina como lidar com o mundo, ele fez a letra pro filho. Poxa, dessa forma tão lúdica, "sobrando o mundo inteiro com asas" dá vontade de crescer rápido e fechar logo a última tira da mochila. Zarpar.

"De dentro dos teus olhos virão monstros imaginários, ou não"