sexta-feira, 18 de abril de 2008

Do céu ao inferno em 12 horas

(tirado na íntegra do caderno de bordo)

Que alegria é viajar!
Até quando as coisas vão de mal a pior há um aprendizado, um ponto positivo. A nossa saída de Fes começou com computador travando e internet caindo no cybercafé perto do hotel. Depois, mandamos um sanduba meia boca (pois já tava tudo meio fechando) numa sorveteria cafona chamada Disney Channel. Isso mesmo, filial de Orlando no Maghreb.

Nosso trem só partiria à 01h50 da madruga. Com uma solidariedade descomunal, Roichid, o tiozinho do café da manhã da pousada de Fes, descolou 2 colchonetes e cobertores e nos deixou dormindo até 00h15 nos corredores. Tava um frio da muléstia e ele foi muito arretado com a gente deixando-nos tirar um cochilo sem pagar e nos acordando para não perdermos a hora. Eu já estava no soninho embalado e iria embora até de manhã. Roichid ainda nos ajudou a levar a montanha de bagagem (é, eu saí de Sampa preparado pra ficar um ano fora e minha mãe num é de comprar pouco...) até o táxi e eu fiquei embasbaco como uma criatura poderia ser tão fofa e generosa com o próximo.

Na estação, entre paginas de Tim Maia e temperatura de 10 graus (tudo ao ar livre), bati um papo com um cara de Casablanca que tinha acabado de voltar da China, com muamba pra dedéu, digo, sapatos de mulher.

Meia hora antes da partida nos alojamos no nosso vagão de 2a classe, que tinha sido bem recomendado por Roichid e pelo Lonely Planet. O maior aprendizado nessa etapa de subir no trem foi: é uma merda viajar carregado.

À medida em que deslizava pelos trilhos, o trem nos brindava com uma temperatura congelante dentro do vagão. Algo entre 5 e 8o e a gente não tava preparado pruma friaca desse porte. Encolhidos e grudados um no outro, tentávamos fazer calor. Quase em vão, pois um vento entrava cortante e sem dó por alguma fresta.

Como já estávamos viajando há algumas horas e já havíamos parado em algumas cidades, pensei que pessoas poderiam ter descido e haveria cabine fechada para nós no vagão de trás. Achei uma e depois de muita força e ajuda de dois caras conseguimos nos mudar. Depois de nos acomodarmos na nova cabine, com porta e só nós, o que dava uma maior sensação de conforto e segurança, não conseguíamos controlar o frio. Minha mãe tava bem mal, tremia demais e cheguei a descascar um Le Monde que ganhamos na Air France e jogar as folhas sobre ela. Nos apertamos como deu e lá pelas 5h20 conseguimos dormir. Pof!
Acordo pelas 6h15 com um grito:
- Felipe, minha bolsa sumiu!

Uma breve espiada sob o banco e a porta aberta concluíram a sentença: levaram a bolsa, encostada ao corpo dela. Saí correndo pelo vagão. Estávamos parados em Casablanca. Cheguei a descer do trem e gritar, mas não vi ninguém suspeito. Um tiozinho chegou a descer por alguns instantes para tentar me ajudar, mas tomou um capote feio. Ajudei ele a levantar e subir no trem já em movimento. Tipo cena de filme, eu tava completamente adrenado e sonado, sensação estranha. Raiva.

E nada! Tudo perdido. Graças a Alá, depois de 52 anos viajando pelo mundo, dona Maria Lucia pela primeira vez não levou o passaporte na mochila e o colocou numa bolsinha colada ao corpo, junto com toda a nossa grana.
Minha mochila, com computador, iPod, livros, e mais alguma coisa, estava super na cara, num banco vazio e eles não levaram. Tipo milagre. Passaporte e cash tavam no corpo. Acho que a proteção contra mau olhado que a Maria colocou quando me deu essa mochila no Natal deu muita sorte e funcionou. Obrigado, Maria.
Um alívio, um aprendizado. Mais um.

Hora de fazer um balanço sobre o que tinha na mochila da minha mãe:
- Câmera digital, a nossa única. (ou seja, fotos por aqui, por enquanto só as de Fes)
- 100 euros
- 1700 Dihams (dim dim daqui, uns 150 euros)
- Carteira de habilitação
- Passaporte vencido, mas com visto americano valido até 2011
- Agenda de telefone com todos os números que usaríamos no resto da trip

Chegamos em Marrakesh, cais bonito, arejado, sem o aperto de Fes. Banheiro limpo e com papel higiênico, raro. Perguntamos pela dalegacia. Disseram para ir na central, fomos. Desce do táxi todas as malas. 5 minutos depois nos dizem que não é lá, que devemos ir para a delegacia do 1o arrondissement. Custa a vir um táxi, vem, embarcamos. Chegamos nessa delega, os caras falam que tem que ir na mais próxima de onde ocorreu o fato, que é no 8o arrondissement. Porra! Que saco! Lá vamo nos pro 8o e os caras chegam lá e deixam a gente umas 3 horas esperando olhando para 15 de fotos diferentes do rei Mohamed VI. Já vi até o rei de fraldas.

Interessante que os canas do Marrocos tem a mesma cara dos do Brasil, a mesma pinta de canastrão, malandro e corruptível.
E fala, fala, fala... estávamos chegando perto do tão sonhado B.O. para depois pedir segunda via dos documentos perdidos no Brasil. Foi quando, ao imprimir uma cópia em árabe, perguntei se não poderia fazer uma em francês para nós. Eles disseram que não porque a língua oficial aqui é o árabe, segundo ordens do procurador do rei, um tipo de 1o ministro. No mesmo grau de importância do profeta Mohamed.

Por fim, fizeram um documento de 5 linhas, escrito sobre uma folha de papel manteiga recortada com régua com o número da queixa e um carimbo da delegacia.
Epa, péra lá!
Pedi uma xérox daquilo que tava impresso, timbrado e com cara de B.O. e o cara disse que não. Dei risada e sinceramente achei que o cara tava brincando. Apesar da demora, eles estavam sendo gentis com a gente e o inspetor chefinho tinha familiares no Brasil e tal... rolava uma simpatia. Só que ele não achou nada divertido, deu uma ameaçada e me disse para procurar a minha embaixada e que eles solicitariam a delegacia uma cópia.

Burrocracia made in Marrocos.

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