sexta-feira, 11 de abril de 2008

Quando um cego volta a enxergar

Torre da medrassa de Fes

Uma novidade atrás de outra, uma montanha de sentidos a ser escalada. A chegada à Fes (aqui dizem “Fês”) se mostrou para mim a resposta conclusiva à pergunta inicial que eu tinha quando idealizei essa viagem: será que não vimos tudo ainda?

Não. Longe disso, há um deserto de sensações, um horizonte de realidade e um mar de experiências a navegar perpetuamente. O Marrocos foi para mim a materialização do oriente como nos contos Shérazade, poder ser Aladin em 2008. O cenário existe, as pessoas existem e o clima parece que nunca acabará.


Fes tem sua essência dentro da Medina, que é a parte dentro dos muros, que datam de 1300 D.C. Lógico, tudo já foi meio reconstruído, restaurado e tal, mas o pó é permanente e aparência antiga prevalece. A cidade nova tem prédinhos de 4 andares como Paris, todos recém construídos e um look impecável. Isso a gente vê na Marginal Pinheiros também.

O que grita, o que é não-convencional é a Medina, essa cidade medieval, recortada de becos e vielas onde descem e sobem pessoas e burros. Muito po. As laterais são forradas de comércio, com muitas variedade. As profissões são medievais, basta esticar os olhos para dentro dos becos parar ver ferreiros fazendo panelas, sapateiros costurando, ceramistas pintando o “bleu-de-Fes” (o tipo de cerâmica local, que não risca, não quebra e não vai para a sua casa sem um bom punhado de Dirham, a moeda local). Tudo ali, diante dos olhos. Vende-se galinha viva, pesa-se a galinha diante dos olhos. Vende-se ramos de hortelã para o chá da tarde – aqui é A bebida oficial, com um monte de folha massacrada no fundo e açúcar para fazer inveja a qualquer tubaína. Se quiser comprar 1 cigarro, tem. Se quiser 1 azeitona, tem. Tem de tudo e na quantidade que quiser.

O grande “ó” do borogodó de Fes é mesmo a medina e toda a vida que acontece dentro dela. Mas nem tudo são flores lá dentro, por supuesto. Quando alguma coisa te interessa você pode estar encrencado, pois não é nem um pouco simples comprar alguma coisa num lugar onde quase nada tem preço. É aquela velha coisa da pechincha, mas tem horas que é muuuuuuuuuito mala negociar com eles. Tem horas que você só quer pagar e ir embora e o cara dá uma de Fabiano Augusto, das Casas Bahia:
- quer pagar quanto?
Porra, quero pagar 10 reais num prato que vale 50, é isso que eu quero. Daí começa o blábláblá do cara, explicando a procedência até do pincel com que o prato foi pintado. Mala total. Eu só queria comprar um prato, mas agora quero sair da sua loja. E o approach todo é bem agressivo para você ver a loja. O nosso conceito de “tô só dando uma olhadinha” simplesmente no hay.

Mas que fique claro, não tem malicia e maldade neles. Pelo contrário, depois de ser abordado desse jeito umas 50 vezes você percebe que isso é um hábito, algo intrínseco a cultura deles. Esse é o valor da negociação, essa é a forma como se faz aqui. Se agrada, espanta ou atrai o turista ocidental, isso é problema deles e eles escolhem como querem fazer. Com um pouco de paciência e calma já dá pra perceber uma bondade acolhedora e incondicional da parte deles. A religião muçulmana prega a ajuda ao próximo como virtude máxima, depois da crença em Alá e no profeta Maomé.

Logo no primeiro dia de andanças, contrariando as regras ditas acima, caímos na loja de louças de Ahmed, um senhorzinho muito iluminado. Com toda a calma do mundo ele nos deixou ver seu produto, explicou como eram queimadas no forno e, só depois de perguntarmos, disse os preços – por sinal, vimos mais tarde – muito baratos. Não bastasse isso, outra coisa nos fez sentir mais acolhidos. Ele não só sabia que o samba era o pais do futebol, carnaval, café e das mulheres. Ahmed, de sorriso fácil e banguela, se revelou integrante do único grupo de capoeira de Fes. Cantarolou algumas melodias e me fez cair o queixo. Não bastasse isso, ficou perguntando se sua pronúncia de palavras como amigo, obrigado e saudade estava corretas. Obrigado, Ahmed, de um tratamento e respeito como o seu já estamos sentindo saudade.

Junto com Ahmed tem também o tiozinho que consertas TV’s e rádios. Esse cara foi um anjo pois cuidou da minha mãe anteontem diante de sua loja enquanto eu procurava hospedagem e hoje ao perguntarmos se ele tinha um adaptador de tomada, ele pulou a bancada de sua loja, foi atrás de uma com um colega e nos deu. E não havia quem o convencesse a aceitar uma moeda nossa. Já tá na mão um chaveirinho do Brasil para levar amanhã. Bondade a torto e a direito.

Duas ou três observações sobre a chegada por aqui. Ao descer do táxi fomos enquadrados por uma montanha de gente oferecendo hospedagem, lógico, das mais caras, com aparentes comissões monstruosas para padrões locais. Com 5 nomes de hotéis indicados pelo Lonely Planet fizemos cara de certeza e fomos perguntando, com a multidão de malas (figurativo) atrás da gente. Chegamos num, custava 450 Dh, uns 120 reais. Prédio lindo, um antigo lar de sultões, que foi transformado no que chamam de riad, uma espécie de pousada chique. Mas o quarto proposto era no térreo bem de frente para o pátio, o que nos incomodaria. Tentaram pechinchar, dissemos que não e fomos a caça. Nessa loucura, nas vielas apertadas não vi um artesão expondo no chão e pisei sobre 4 cinzeiros. Um homem ao meu lado viu e queria pagar metade do prejuízo junto (!). Me disse que na religião deles era assim e tal, mas eu fiquei com medo de ficar devendo um favor a um cara que eu nunca tinha visto e não reconheceria. Assim, achei melhor pagar os 20 Dh (5 reais) de prejuízo, pedir desculpas e dar um sorriso.

Depois de 45 minutos zanzando e me perdendo pelas vielas achei duas opções, o marajá dos marajás por 650Dh ou o básico do básico por 170Dh (uns 40 reais) com café da manhã. Mamãe resmungou, mas aqui estamos nos para nossa terceira noite no hotel Cascade, de mochileiros e malucos around the world. O entalhador hoje descobriu onde estávamos apenas pelo preço, sinal de que aqui é mesmo o mais barato. O banheiro é sujo e fora do quarto, o chuveiro é frio e apertado (tem um aquecedor em algumas – duas ou três – horas do dia), e o quarto não tem toalhas ou alguma janela decente. Mas achamos o ritmo e estamos bem habituados.

Comida é uma beleza e quem me conhece sabe que eu sou mais que chegado numa junky food. Junky de verdade, eu não tô falando de Mc Donalds’s, mas de coxinha de beira de estrada, ovo rosa, pastel de ontem, esse naipe de tóxico... Marruecos já se mostrou um verdadeiro templo para religião. Tem de tudo baratinho na quebrada. Espetinho de kafta (de boi, sempre, muçulmanos não comem porco), bolinhos de amedoim (lembrei do Passoka, sure), docinhos mil, suco de pistache (ainda não tomei), chá de menta...
Mas a estrela da viela é sem dúivida nenhuma o sanduba de carne de camelo. Eu estava meio cético, pois o point da região tem uma cabeça de camelo (de verdade!) empalhada bem ao lado do rango. Confesso que não dá muito apetite. Mas hoje, por volta das 20h30, depois de mais de 9hs camelando pela medina, achei mais que justo.
Além de muito barato (15dh, uns R$ 3,50), o negócio é bão mesmo! Tem um gostinho de carne de carne moída de hambúrguer com fígado. Recomendo e coloco fotinhos.

Com todos os sentidos aflorando e voltando a enxergar que o mundo pode ser muito, mas muito diferente do que eu imaginava, vou dormir lendo mais Tim Maia que tá bom demais!

Chukram (obrigado, por aqui) e Salam - paz e proteção (se divirtam com os trocadalhos) - a todos.

PS: ainda nao consegui pôstar mais fotos , o cyber aqui eh bem complexo, com teclado em arabe! Vou tentando, aproveitando a sexta feira que qaui eh como o nosso domingo

7 comentários:

Thais disse...

Que tesão.

Sucesso, meu querido. E beijos aos ventos daí, dando voltas...que voltem, contigo. que voltes melhor.

Unknown disse...

Eu quero um bolinho de amendoim!!! E um sanduiche de Camelo!! E a louça que não risca e não quebra!

Nossa, que consumista. Por isso que é você em Marrocos e não eu. Eu não notaria todas as coisas que você notou... puta olho aguçado o seu

Tire fotos em contra-plongé e coloque num Flickr, seu feioso.

Aquele abraço

Lu Proença disse...

Meu querido!! Que orgulho de ti!! Muito mesmo.. que essa viagem te traga muitas respostas, questionamentos, conquistas, caminhos e amores... estou na torcida por vc sempre!! Muitas saudades muita mesmo... vou ler tudo com calma e te escrever um email com mais dedicação.. mas queria registrar aqui ..
te amo lindinho..
Good Luck!
bjocas
Lu

Paulo Levi disse...

Orra meu, já começou arrebentando!

Nunca fui pro Marrocos, mas só de ler esse post já deu pra ouvir os ruídos da Medina (inclusive o dos do badulaques que viraram caquinho embaixo da tua bota) e ver a poeirinha suspensa contra a luz. Quanto às características organolepticas do McCamelo, prefiro não imaginar nada.

Que venham os próximos posts!!!

Unknown disse...

delícia de texto!
beijinhos saudosos, bilu

Mariana disse...

Sensacional!!

sua descrição me fez viajar!
O Marrocos nunca esteve nos meus planos de viagem, mas você me deixou com imensa vontade de andar pelas vielas de Fes...

Olha, se todos seus posts forem assim, ao final dessa viagem você terá um livro de sucesso em suas mãos!!

Grande beijo!

Unknown disse...

Sanduíche de camelo?Manda um pra nóis ^^